Para a amiga Bia Fonseca
Estamos todos em um momento de pleno desencanto. Já havia pensado sobre isso algumas vezes, começado a esboçar escritos aqui e ali sobre o comportamento que observo em todos os lugares. E o desabafo desencantado da amiga Bia me fez pensar sobre isso. Sobre o momento do desencanto e sobre como isso representa nosso modo de encarar a vida. Ela, que se vê em um momento de descontentamento profundo com o mundo que nos cerca, fechou um pouco os olhos para a magia. Eu, por outro lado, tento encontrar meu alento nas aventuras da ficção, antigas e novas. Nas palavras que nos trazem fantasia.
Vivemos num momento de polarização, e minha bússola aponta em uma direção que não precisa ser dita, não nesse momento. Mas acho importante dizer que, quando arrisco afirmar que todos estão em um momento de desencanto, falo pela esquerda e pela direita. Se o mundo não estivesse mergulhado em amargura e descontentamento, uma extrema não gritaria impropérios para a outra. Uma extrema não usaria a outra como o inimigo comum, que come criancinhas, como aquele a ser combatido para unificar um exército ou uma identidade. Se o mundo não estivesse abalado, esses extremos sequer teriam voz.
Mas não é o momento de falar em esquerda ou direita, é o momento de falar da humanidade.
Uma parte de mim tenta não pensar sobre o assunto, e não consegue.
Outra parte quer acreditar que a humanidade só tem melhorado (e, sim, evitei de propósito a palavra “evoluído”, por motivos filosóficos e espirituais). Quer acreditar que já fomos violentos, cruéis, abomináveis, largados à sujeira, insalubres, e que hoje estamos tentando nos distanciar desse passado. Que outrora guerreamos por territórios, escravizamos um continente inteiro, subjugamos mulheres e negamos o acesso a coisas básicas para grande parte da população. Pense em todas as descobertas científicas que presenciamos todos os dias, desde aquelas que já nem percebemos, como a luz elétrica, até o desenvolvimento de vacinas em tempo recorde. É claro, temos aqueles que não acreditam na ciência, mas eles chegarão lá.
Essa parte debate, tomando um café com outra parte, que por sua vez teme que esses descrentes nunca se abrirão para o conhecimento. E então a parte que acredita pondera: veja o que estamos discutindo sobre direitos civis, gênero, cor, cidadania, empatia. E meu debate interno segue em frente.
Outra parte quer acreditar que estamos no início da jornada, no mundo comum. Naquele momento em que o herói e a heroína se veem em um mundo sem esperança, presos em um eterno cotidiano de melancolia, em um mundo que não entendem mas no qual precisam sobreviver. Naquelas primeiras páginas que Tolkien, LeGuin, Gaiman, Austen, Dickens, Bradbury, Brontë, Asimov, Riodan, Rowling e tantos outros nos descrevem para nos apresentar um mundo que, em breve, seria chacoalhado, ferido, renascido e, definitivamente, alterado.
Para ser sincera, quero crer que já fomos chamados à aventura, e que já atravessamos o primeiro limiar. E estamos naquele ponto em que o mal é tão grande, tão grande, que só nos resta pensar nas palavras que Sam diz a Frodo (Tolkien, O senhor dos Anéis):
“Frodo: – Não consigo fazer isso, Sam.
Sam: – Eu sei. Está tudo errado. Nós nem deveríamos estar aqui. Mas estamos. É como nas grandes histórias, Sr. Frodo, as realmente importantes. Aquelas cheias de escuridão e perigo. E às vezes você nem queria saber o final, por que como o fim poderia ser feliz? Como o mundo poderia voltar a ser o que sempre foi quando tanta coisa ruim aconteceu? Mas, no final, essa sombra vai passar. Um novo dia virá. E quando o sol nascer, ele brilhará ainda mais. Essas eram as histórias que ficavam com você. Que significavam algo. Mesmo quando eu era pequeno demais para entender por quê. Mas eu acho, Sr. Frodo, que eu entendo. Agora eu sei. As pessoas daquelas histórias tiveram muitas chances de voltar atrás, mas não fizeram. Elas continuaram, porque estavam se agarrando em alguma coisa.
Frodo: – A que estamos nos agarrando, Sam?
Sam: – Que há algo de bom nesse mundo, Sr. Frodo, pelo que vale a pena lutar.”
Mas, se cruzamos o limiar, onde estão nossos mentores? A quem devemos ouvir? Quem são nossos aliados? Nossos inimigos? Quais são os testes que nos levarão à caverna oculta e ao início da provação?
A parte de mim que olha a vida com os olhos da aventura, até um pouco demais, quer acreditar que existe, sim, algo de bom nesse mundo, pelo qual vale a pena lutar. Que os aliados são aqueles que não se deixam calar diante da injustiça e da iniquidade. Que levantam bandeiras, não a favor de um pequeno grupo ou colocando a culpa de todo o mal em quem os contraria, criando discórdia e semeando ódio. E sim todos os que levantam suas vozes em prol da humanidade, da justiça, da união.
Qual parte de mim estará correta, só o futuro dirá. Ainda não sei se minha mente se inclina para a alienação, para o pragmatismo ou para a aventura.
Cá entre nós, meu coração sabe exatamente em que ponto da jornada estamos.